A exposição “Coisas de Alice” é fruto da colaboração criativa do duo BordaDuras, formado pelas artistas Giovana Casagrande e Leila Alberti.
Desenvolvida a partir de uma pesquisa de 3 anos, a mostra consiste de trabalhos híbridos que mesclam porcelana com crochê e bordado, resgatando objetos culturais esquecidos — como bules e xícaras de porcelana branca — e convidando o público a revisitar memórias afetivas.
Detalhe da obra: Encontrei um Rato em Meu Vale de Lágrimas, 2013, Assemblagem/Objeto/Bordado – Porcelanas, aglutinante, lãs e fios, 20X26cm
Em uma época de individualismo exacerbado, as artistas se colocam na contramão do fluxo ao realizar o trabalho de produção em conjunto. É justamente a partir do diálogo, marcado pela troca de ideias e de gestuais, que as obras são criadas. Cada objeto artístico produzido é resultado de um processo lento de sucessivas tentativas – algumas das peças levaram diversas semanas para serem concluídas, por exemplo.
No conjunto de obras intitulado “Coisas de Alice”, Casagrande e Alberti procuram resgatar objetos culturais que se perderam no tempo – objetos de memória, como bules e xícaras de porcelana, que buscam chamar a atenção do espectador, convidando-o a mergulhar em referências familiares. Não obstante, as artistas se dedicam a compartilhar com o público a cultura que lhes foi legada, propondo uma reflexão sobre o presente a partir do passado por meio do fazer manual, da pausa para o chá, e da Alice de Lewis Carroll, personagem do século XIX que ainda nos é tão atual.
Visando sempre agregar técnicas, olhares, cores e pontos, Giovana Casagrande e Leila Alberti apresentam o bordado como um agente de ligação – não apenas entre si e entre objetos, mas das obras com o público, do público com o seu fazer artístico e das relações existentes entre passado e presente, liberdade (de técnicas) e contrição (de nós que unem pontos).
Ao investir tempo e afeto em cada ponto dado, as artistas possibilitam a reflexão a respeito do uso e do valor do tempo, descolando o espectador desse estado de semi-amnésia em que vivemos devido ao excesso e à velocidade de informações que nos atropelam. Frente às facilidades proporcionadas pelo avanço da tecnologia, a intenção é de estimular a sensibilidade para o fazer manual, e lembrar o papel fundamental do homem na construção diária e harmônica de nossas relações. Visa-se, assim, a complementariedade das atuais formar de se viver, sem desvalorizar as que nos precederam.
Neste contexto, a realização do projeto Bordaduras é relevante, pois tornará público o que é de foro íntimo: a paciência para conviver e construir junto uma linguagem, num jogo de ganha-ganha. O objetivo é promover a reflexão a respeito da nossa relação com o tempo, com os nossos semelhantes e com a sociedade em que estamos inseridos.
Detalhe da obra: Rei de Espadas, 2013, Assemblagem/Objeto/Bordado – porcelanas, aglutinante, lãs e fios, 25X70cm
#Texto da exposição
_Tânia Bloomfield
De início, uma dúvida se abate: o que se vê seduz ou repugna? A ambiguidade suscitada pelas peças que implicam e manifestam os universos de Alice, Giovana e Leila, no entanto, não impede a percepção de que se está diante da emergência de conteúdos do inconsciente materializados em forma de porcelanas enredadas. E isto se configura como um apelo irrecusável ao olhar e aos jogos associativos.
Como expurgos que são retirados de dentro de artefatos em rituais de desobsessão, as imagens e criaturas relacionadas ao mundo onírico de Alice, pouco a pouco, ganham forma e tornam-se inteligíveis nas porcelanas desconcerto. Mas a estranha força oriunda desses expurgos não pertence às planícies do consciente e parece se recusar a abandonar os corpos de que deseja fazer parte. Assim eles surgem, orgânica e desordenadamente, alastram-se, estrangulam, impedem os orifícios de realizarem as necessárias trocas dos corpos com o meio.
Aqui, as porcelanas, produtos da razão técnica, são impedidas de cumprirem sua função devido aos atos obsessivos das artistas. Sua brancura asséptica é maculada pela profusão de cores dos fios retorcidos. Os diferentes calibres e naturezas dos fios emaranhados percorrem os corpos como exoesqueletos. O avesso transmuta-se, como vísceras que se instalam na pele alva e curvilínea da louça. Não há perspectivas nem caminhos seguros ao se tentar seguir as múltiplas e erráticas trajetórias das meadas narrativas, porque assim como acontece com Alice em seu território fabuloso, a lógica subjacente é apenas tangenciada, esconde-se abaixo das superfícies, e não está imediatamente disponível à racionalidade.
Como mutações genéticas causadas pelas assemblagens de Giovana e Leila, inocentes animais eclodem como excrescências nos utilitários. Um bestiário relacionado a atos psíquicos que não revela facilmente os significados mais profundos, encerrados em sua aparição. Contudo, segundo Michel Maffesoli, se se quer revolver as profundezas das relações entre indivíduo e sociedade, a aparência e as formas das coisas apresentam-se como importantes ferramentas conceituais.
Flertando com o kitsch, com as junk sculptures, e com os desdobramentos e injunções do capitalismo, o trabalho escapa dos reducionismos justamente por se localizar na zona de penumbra que mistura o desejo e a morte, o belo e o repulsivo, o dito e o interdito, o genuíno e o artificio.
Atualizando as coisas de Alice e seu mundo invertido no espelho, a poética das artistas alude às práticas ancestrais referentes aos regimes do feminino e aos códigos naturalizados das sociabilidades. Analogamente ao trabalho de Lewis Carroll, as coisas de Giovana e Leila denunciam, por meio de metáforas visuais, que determinadas morais ainda remanescem na contemporaneidade.
Detalhe da obra: Odsarta Ohleoc, 2013, Objeto/Assemblagem/Bordado – porcelanas, aglutinante, lãs, fios, relógio e corrente, 20X30cm
Sobre as artistas:
O projeto BordaDuras nasceu no encontro de artistas plásticas que buscavam, na pesquisa de objetos, uma forma de comunicação inovadora utilizando as práticas manuais tão fortes no universo feminino. Manualidades carregadas de significado e empoderamento, reflexo da trajetória de tantas mulheres na história.
Giovana Casagrande é graduada pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) e pós-graduada em História da Arte Moderna e Contemporânea pela mesma instituição. Desde 2007, pesquisa e trabalha com cerâmica.
Leila Alberti é graduada em Letras pela Universidade Católica do Paraná e em Pintura pela EMBAP, além de especialista em Poéticas Contemporâneas no Ensino da Arte pela Universidade Tuiuti do Paraná. Desde 2010, dedica-se à criação de objetos em porcelana.
Detalhe da obra: Apunhalei meu Coração, 2012, Assemblagem/Objeto – porcelanas, aglutinante, fios e lãs, 15X20cm
Coisas de Alice Abertura: 17 de abril de 2025, às 19h Encerramento: 23 de maio de 2025 de terça a sexta, das 13 horas às 18 horas, última entrada às 17h30.
Artista Leila Alberti e Giovana Casagrande Texto da exposição Tânia Bloomfield Assessoria de Comunicação Renata Borges Todescato Estagiária de Jornalismo Isabeli Cristine Guerreiro Comissão Cultural BRDE Mariana Bernal, Paulo Marques e Sandro Hauser Coordenação de Cultura Mariana Bernal Mediação Kathia Bello
A exposição Coisas de Alice foi selecionada pela Comissão Cultural do #BRDE Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul.